Tirza

André Taffarello
4 min readNov 27, 2023

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Há algum tempo, enquanto conversava com uma amiga, me toquei que nunca havia lido um livro escrito por um autor holandês. Depois de uma rápida pesquisa, fiquei interessado por Tirza, escrito por Arnon Grunberg. Algumas poucas resenhas em português em geral elogiavam o livro, e me decidi por ele. Seria mais um passo no meu pequeno projeto de diversificação cultural — ver mais filmes não-norte-americanos, ler mais livros que não sejam do cânone estabelecido.

A surpresa veio quando comecei a pesquisar o livro para compra. Não existem versões digitais, e o livro físico está esgotado. As cópias mais baratas custavam pelo menos R$100,00, o que sem dúvida é um preço bem salgado para um livro.

Estava pensando em procurar por uma edição importada, em inglês, quando me deparei com história maluca da Rádio Londres, a editora que publicou o livro no Brasil. O fundador da editora, um italiano que morava em Londres, acreditava que existia um mercado a ser explorado na América do Sul, e se mudou para o Brasil com essa ideia em mente. Seus planos eram trazer livros escritos por autores menores, fora do círculo de publicação tradicional das grandes editoras brasileiras. Na prática, apesar de algumas edições muito elogiadas, a editora começou a fazer água em pouco tempo. O dono não entrou com um processo de falência, nem tentou quitar suas dívidas — simplesmente sumiu, deixando um calote de grandes proporções.

A essa altura (não sei bem dizer porquê), eu decidi que precisava de um exemplar dessa edição específica. Pensei em um diálogo em O Homem do Castelo Alto, em que dois personagens conversam sobre a diferença entre um isqueiro antigo qualquer, sem nenhum valor específico, e um isqueiro idêntico, que foi usado por uma grande personalidade histórica, e que por isso é comprado por valores vultosos. O meu Tirza da Rádio Londres seria pra mim como uma calça usada por Elvis, ou um NFT de macaco comentado pelo Neymar. Justifiquei o gasto exorbitante para as pessoas próximas argumentando, com pouquíssima eficácia, que era uma edição bonita, de capa dura, em perfeito estado. Não enganei nem a mim mesmo, e foi com medo que comecei a leitura. Medo de não gostar do livro, ou de ser uma leitura mediana — o que era, de fato, muito provável.

Mas logo nas primeiras páginas, percebi que Tirza não é um livro que seja facilmente classificável como mediano. É uma leitura incômoda, com personagens estranhos, mas que me prendeu do início ao fim. A história é narrada em terceira pessoa, mas o texto se passa quase todo dentro da cabeça de Jörgen Hofmeester, o protagonista, um homem que se aproxima da velhice questionando as decisões que tomou durante a vida.

O livro começa com Hofmeester preparando uma festa para sua filha, Tirza, que dá nome ao romance. Ela está terminando o ensino médio e se prepara para uma grande viagem pela África, o que é uma enorme preocupação para o pai. Na noite anterior à festa, a esposa, que havia abandonado Jörgen para morar em uma casa-barco com uma paixão adolescente, volta como se nada tivesse acontecido.

Segue-se uma série de decisões bizarras tomadas não só por Hofmeester, mas também pela esposa e, em geral, por quase todos os personagens. O livro alterna a narrativa do tempo presente com lembranças de acontecimentos passados. Hofmeester é patético. Ele incorpora tudo o que há de pior na pequena burguesia europeia pós onze de setembro, racista e islamofóbica, além de machista. Não vem ao caso ficar listando todas as atitudes e pensamentos reprováveis do personagem, mas, acredite, são muitos. Apenas para ilustrar, Tirza está namorando Choukri, um rapaz de ascendência árabe com quem vai viajar pela África, mas Hofmeester insiste em chamá-lo de Mohamed Atta, um dos terroristas do onze de setembro.

A relação do protagonista com Tirza é emblemática, bastante edipiana, e revela muito sobre a psicologia do personagem. Jörgen vê Tirza como sua posse, uma extensão de si, não como um ser autônomo, capaz de ter as próprias vontades e decisões. Assim, o namorado “errado” da filha é como uma invasão de seu território, uma violação a seu próprio ser.

“Você não é um homem”, fala, “você é nojento. É isso que você é. […] Como posso pensar em você como pai? Saia daqui. Saia daqui.”
“Mas é isto o que os homens são. Tirza, isto é assim. Não posso fazer nada. Não conheço nenhum que não seja nojento. O homem é a própria imundice.”

Essa pequenez foi esfregada na minha cara, página atrás de página, até o final da leitura. E é incômodo, porque guardadas as proporções, todo homem tem um pouco de Hofmeester. Os seus múltiplos fracassos em todas as esferas da vida serviram como espelhos para os meus próprios fracassos, e seu lado mais sombrio, racista e misógino, me levou a refletir em como pessoas aparentemente normais, até mesmo pacatas, podem ter dentro de si monstros escondidos — coisa que ficou bem evidente nas últimas eleições.

No final, eu não sei se o livro vale o que paguei por ele, mas posso dizer que não me arrependi. No mínimo, tenho uma boa história para contar.

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