A Sombra do Vento

André Taffarello
4 min readSep 17, 2023

--

Terminei ontem uma releitura de A Sombra do Vento, livro do espanhol Carlos Ruiz Zafón, tentando me lembrar do quanto tinha aproveitado o livro na primeira leitura. Foi há vários anos atrás, em uma época complicada de minha vida (é certo que todas as épocas são complicadas, de alguma forma), e me lembro de ter gostado bastante da história, mas também de uma certa torcida de nariz com o aspecto jovem-adulto da escrita do autor. Na época, pensei que, apesar de ser um bom livro, era de alguma forma fácil demais pra mim, acostumado a leituras mais difíceis, profundas, complexas.

Hoje penso nessa postura diante do livro com um certo estranhamento, uma pequena vergonha. Parece que eu não prestei a atenção que o texto merecia, levando vários meses para terminar. Vários detalhes me passaram desapercebidos, coisas que fui notar nesta segunda leitura, que terminei rapidamente, devorando as páginas. Hoje, A Sombra do Vento me parece adulto, complexo, ainda que acessível.

É verdade que o livro de Zafón não é perfeito. As personagens femininas são particularmente problemáticas, e parecem só existir em função do desejo e do amor que despertam ou sentem pelos homens, esses sim, destinados a mover a história. Nuria Monfort, por exemplo, é relegada ao repetido chavão da mulher que ama e cuida, apesar de desprezada, apesar do objeto de seu amor ser uma sombra, apesar de tudo. Na estrutura do romance, sua existência na história serve apenas para reforçar as características de Julian Carax, como uma “prop”, um trampolim narrativo.

Mas isso não quer dizer que A Sombra do Vento não tenha qualidades. No começo da história, o pai de Daniel, o protagonista, o leva ao Cemitério dos Livros Esquecidos — um lugar onde são guardados livros que estão de alguma forma ameaçados de não mais existir. Daniel escolhe um livro ao acaso, A Sombra do Vento, escrito por Carax, e engrena na leitura com voracidade, nos fornecendo um pequeno resumo quando a termina. E este resumo de Daniel do livro de Carax seria um excelente resumo de A Sombra do Vento, o livro de Zafón.

Foi delicioso fazer a releitura, me atentando a esses detalhes, a história replicada dentro da história, ecoando, se repetindo. As inúmeras referências a outros livros também são ótimas. Desde a primeira frase:

“Ainda me lembro daquele amanhecer em que meu pai me levou pela primeira vez para visitar o Cemitério dos Livros Esquecidos. “

Claramente inspirada na abertura de Cem Anos de Solidão:

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buéndia havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.”

A relação dos personagens principais com os livros é profunda e revela detalhes de seu caráter. “Há prisões piores que as palavras”, repete a história, enquanto os personagens se escondem nos livros, vivendo vidas emprestadas das páginas e se refugiando do mundo real, onde só encontram tristeza. Pensei em O Livro do Desassosssego, em que um heterônimo Fernando Pessoa afirma e reafirma que o seu mundo sonhado, suas ideias, seus livros, seu universo interior, é mais verdadeiro que o mundo externo, a materialidade.

O antagonista da história, o inspetor Fumero, odeia ativamente qualquer leitura, preferindo ir ao cinema. Zafón não esconde seu pouco apreço pelas artes visuais, taxadas por ele como a destruição da imaginação. O autor, morto em 2020, rejeitou várias tentativas de levar a série de livros para as telas.

Foi delicioso caminhar pelas ruas de Barcelona de 1946 com os personagens da história. O exercício de imaginação a que o livro nos convida — e que, posso afirmar, qualquer bom livro de ficção convida — , construir mundos de sonho, castelos de areia internos, profundamente pessoais, é um ato de resistência nesses tempos tão práticos, tão utilitaristas. Ainda que nossos passos nesses universos paralelos sejam efêmeros, eventualmente perdidos na sombra do vento, muitas vezes são a melhor forma de enfrentar os desgostos da materialidade. Com certeza, há prisões piores que as palavras.

— — — -

Durante essa semana, tive o desprazer de me propor a ouvir um podcast com o ex-ministro da Economia, Paulo Guedes. Entre outras barbaridades, ele afirmou nunca ler nenhum livro de ficção, por conta de um pretenso “amor à verdade” e já ter “imaginação demais”. Disse que, se fosse ler ficção, sua imaginação tomaria conta e ele “viraria um escritor”.

Paulo Guedes parece ser uma daquelas pessoas que, convencidas pelo excesso de bajulação, pensam que poderiam ser extraordinárias em qualquer área, se dirigissem seus esforços a ela. Mas talvez ele devesse pensar nessa ideia de virar escritor com carinho. Um escritor medíocre faz muito menos estragos no mundo que um economista medíocre.

--

--